RISCANDO O CÉU DE OUTUBRO
Como as gotas de chuva riscando o céu de outubro, aí vão, gotejantes, vários pequenos pensamentos.
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Lucas Mendes, o apresentador do programa dominical
Manhattan Connection, alça todas as semanas um esforço de imortalidade. Em vez de terminar o trabalho com o sóbrio "boa noite" de um Bonner, ele vai além - sorri e acrescenta um "até a próxima".
Concretizando-se cada "até a próxima" todo domingo, ele sabe que, de semana em semana, vai garantindo um pouco mais de vida. Mais sete dias de debates, guerras, descobertas científicas, escândalos, ataques terroristas, eleições, quedas e altas na Bolsa, lançamento de livros e filmes, entrevistas diversas, enfim - mais sete dias de vida neste planetinha tão movimentado.
Debatendo por um mundo melhor. Sete dias de cada vez.
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Eu não entendo essa coisa de "ah, mas esse veículo é para um grupo mais politizado". Como se isso fosse sempre algo
bom. Uma coisa é público mais
culto, mais
erudito, mais
instruído... mas
politizado pra mim soa como pessoa com mente formada, seguidora firme de um partido, dogmática, estagnada. O Betão é um cara super-politizado. Os guevaristas da FAFICH também, e também os panfletários do PSTU, os
skinheads e os olavetes.
Agora, que a
Caros Amigos¹ é orientada para um público mais
politizado... ah, isso eu concordo.
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Lembram daquele post onde eu discutia a noção de que o melhor caminho é sempre o do meio? Isto é, a idéia de que a verdade está sempre no equilíbrio?
Pois me veio a cabeça que essa idéia - que ilustrei ser errônea - nos foi herdada de Aristóteles. Ele que desde esse tempão todo já vem martelando a tal
justa medida. Longe de mim discordar do fato de que as coisas têm realmente de vir em certas quantias, nem muito mais nem muito menos. Tal idéia, porém, revela-se completamente vazia e dotada de nenhum poder explicativo, quando observamos situações bem simples.
Entre
jejuar para sempre e
comer toda a comida do mundo, o melhor caminho não está no ponto médio dos extremos. Está na verdade extremamente próximo de um deles. Da mesma forma, entre
falar somente a verdade e
falar somente mentiras, não se leva uma boa vida mentindo em metade de tudo que falamos - na verdade, a porcentagem de verdades deve ser bem próxima do total de coisas que falamos, sob o risco de cairmos em contradições humilhantes e/ou perdermos vários pontos no quesito
reputação. (esta porcentagem, evidentemente, pode ser substancialmente reduzida no caso de políticos, advogados, médicos e certas outras profissões).
Assim, Aristóteles nos ensina a seguir o caminho do meio, embora o meio quase nunca esteja realmente no meio. Mas que belíssimo ensinamento.
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E tem aquela do estóico que entrou no bar e falou pro
barman:
-
Barman, nós somos todos racionais.
- Arrã - fez ele, enxugando um copo.
- Todos nós. Todos. Certo?
- Certo.
- E a razão é igual para todos... embora seja arriscado dizer que raciocinamos todos do mesmo jeito, todos, ao raciocinarmos, chegamos às mesmas conclusões.
- ...
- Cálculos matemáticos, estratégias militares, decisões cotidianas... se munidos das mesmas informações e usando o mesmo aparelho de raciocíno, pensamos - racionalmente - igualzinho.
- Sem dúvida.
- Mas e se a moral vier da razão?
- O que é que tem a moral a ver com isso?
- Ora, se a moral vêm da razão, e se somos todos racionais, e todos racionais do
mesmo jeito, então a moral tem que ser igual pra todo mundo!
- É
vero - grunhiu.
- Todo mundo, entendeu? A moral é igual para todos! Todos os malditos povos, culturas... todas as pessoas, independentemente de sexo, idade, religião, visão política... tem que ter o mesmo raio de moral! - e bateu no balcão com força.
- É o que parece.
Neste momento o estóico sacou uma arma e apontou para o
barman.
- Mas o quê é isso?
- Passa a birita que hoje eu não tô procê não.
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A morte de Christopher Reeve foi usada pela Rede Globo com fins políticos. No
Jornal Hoje desta segunda-feira, logo após o anúncio da morte do ator e ativista, mencionaram que enquanto George W. Bush se opõe ao financiamento federal de pesquisas com células-tronco, John Kerry garante que se eleito vai gastar dinheiro nisso. Logo após esta comparação, mostraram uma pesquisa que indica o republicano com 44% das intenções de voto, contra 47% para o democrata - ressaltando, com certa má vontade, que a margem de erro da pesquisa é de 4 pontos percentuais - portanto, inda estão empatados.
Evidentemente, apesar de deixarem claro que as pesquisas com células-tronco podem no futuro salvar casos como o de Reeve, não ressaltaram que caso Kerry venha a financiar as pesquisas, terá que tirar dinheiro de algum lugar. E o orçamento do governo dos EUA não é lá o tópico menos polêmico do mundo.
Nada, claro, contra o ator e ativista Reeve, que fez valer na vida real o papel de herói que lhe fez famoso. Muito menos contras as pesquisas - Lula bem que podia cortar salários de deputados federais e senadores e usar o dinheiro para ajudar os cientistas brasileiros.
É profundamente triste - mas sobre os túmulos dos heróis os espertos fazem mais do que vender lenços.
Descanse em paz, Reeve. E que viva para sempre o Super-Homem.
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Nesta cinzenta semana perdemos outro ícone cultural: Fernando Sabino. Agora eternamente ligados pela triste coincidência de terem deixado o mundo num mesmo - curto - espaço de tempo, não se sabe qual figura é mais digna do título de
Grande Mentecapto.
¹
No Cartoon Network, a extremamente subversiva figura do Número Um apareceu iniciando um discurso com as palavras "caros amigos!". O que andam lendo os tradutores do Cartoon brasileiro...?
Peixes: