PAISAGENS BUCÓLICAS
(ao som de O Rappa - Rodo Cotidiano)
Apenas
ela, dentre todas,
ela - jóia tão rara- o compreendera.
Ele era insano, claro. Sua personalidade única se manifestava até mesmo em pequenas expressões cotidianas. Ele tinha seu próprio jeito para perguntar as horas, pronunciava certas palavras de um jeito só seu, cantarolava músicas com as quais ninguém mais se importava, contava piadas internas mesmo que não houvesse ao redor ninguém mais capaz de entendê-las. Alguns chamavam-no
esquisito ou mesmo
bizarro. Outros, aqueles que queriam agradar, diziam-lhe
autêntico - pois havia quem gostasse. A maioria - quase todos- apenas olhava uns para outros com rostos expressando o desconforto com aquele de personalidade tão singular. E terrivelmente tão... tão... sóbrio!
U-ô-ô-ô, my brother
U-ô-ô-ô, my brother
U-ô-ô-ô, my brother
U-ô-ô-ô, my brother
Mas
ela - ah! -
ela o entendera¹. E numa quente sexta-feira de primavera, eles estiveram nos braços um do outro. E ele descobriu o sabor de lábios, e se regozijou.
Mas o que somente a paixão pode fazer compreender é esquecido quando esta se apaga. Paixão e razão nunca foram opostas. Nem sequer complementares. São apenas manifestações diferentes de um mesmo espírito. E o que é construído pelas duas juntas, por mais belo que seja, com facilidade se desfaz se uma rompe a aliança.
A idéia lá comia solta
Subia a manga amarrotada social
No calor alumínio
nem caneta, nem papel- uma idéia fugia
Era o rodo cotidiano, era o rodo cotidiano
Espaço é curto
quase um curral
na mochila amassada
uma quentinha abafada
meu troco é pouco é quase nada
meu troco é pouco é quase nada
E em pouco tempo ela se esqueceu do que sabia, porque a paixão que lhe iluminava o pensamento a abandonou. Pois a distância e o tempo são para a paixão como o vento para a fogueira: extingüe a pequena e reacende e abrasa a grande.
E desta historinha totalmente fictícia se apreende uma importante lição:
A obsessão que a grande maioria das pessoas têm em serem normais - lançando o máximo de esforços para imporem suas personalidades e preferências sem serem taxados de estranhos - é saudavelmente abandonada pelos que nela não vêem graça nenhuma.
U-ô-ô-ô, my brother
U-ô-ô-ô, my brother
U-ô-ô-ô, my brother
Ô-ô-ô-ô, my brother
Obviamente, esta lição também não pode ser aprendida com a razão somente. Mas já dizia Olavo Bilac:
"Pois sabei que é por isso que assim ando:
Que é dos loucos somente e dos amantes
Na maior alegria andar chorando."
***
Por outro lado, existe
ela. Esta
ela não é a mesma
ela de antes. Oh não
, ela é diferente. É tudo - tudo - o que ele poderia desejar, e muito mais - com certas gratificações extras muito bem-vindas e bem colocadas no lugar.
Mas é inalcançável. Um dos maiores arrependimentos
dele é não ter arriscado na única boa oportunidade que teve para tê-la nos braços. Mas ele era à época inda mais tolo. E agora é prudente demais para não perceber a intransponível distância entre os dois.
Não se anda por onde gosta
mas por aqui não tem jeito, todo mundo se encosta
Ela some no ralo de gente
Ela é linda, mas não tem nome
É comum e é normal
Sou mais um no Brasil da Central
Da minhoca de metal que corta as ruas
como um Concord apressado, cheio de força
Voa, voa mais pesado que o ar
o avião do trabalhador
E ele tenta usar da razão para se convencer a não ficar deprimido por isso. "Não posso chorar por não tê-la", pensa sobre a garota que viu em sua frenta tantas vezes, "seria o mesmo que chorar por não ter a Gisele Bündchen".
Imaginem um personagem assim, gente?
***
Não há lugar mais cinematográfico do que um campo gramado à noite, com o céu acobertado de estrelas. Nem sequer mais aconchegante - pode algo ser tão acolhedor quanto um manto estrelado?
U-ô-ô-ô, my brother
U-ô-ô-ô, my brother
U-ô-ô-ô, my brother
Ô-ô-ô-ô, my brother
¹
Á maneira de Edgar Allan Poe.
Peixes: