DORMIENS ET TITILLANDUS, URBEN
Existem quatro obessões muito difundidas entre as pessoas e apoiadas pelo senso comum que não fazem sentido, uma vez analisadas - e poluem o pensamento de um mundaréu de gente, contaminando-os tão fortemente que o fazem dizer múltiplas bobagens. Elas estão correlacionadas - todas, em nome de algum nobre princípio de busca pela verdade, servem apenas como grilhões para manter os ignorantes presos à mediocridade. São elas: a obessão por neutralidade/imparcialidade, a obsessão por normalidade, a noção de busca da verdade pelo equilíbrio, e a obsessão por coerência de personalidade. Tratarei-as separadamente.
A obessão por neutralidade/imparcialidade consiste na exigência dupla¹ de que a) jornalistas sejam imparciais em seus trabalhos e b) cientistas sejam neutros em suas pesquisas. Esta noção é utilizada até mesmo por quem deveria estar mais consciente dela. Outro dia eu vi na TV aberta um telejornal anunciando sua imparcialidade. Um absurdo, uma desinformação descarada, algo que poderia ir para o PROCON.
Da mesma forma, o senso comum dita que os cientistas sejam neutros ao longo de suas carreiras. Será mesmo que um cientista pago pelo Greenpeace chegará às mesmas conclusões que um pago pela Monsanto, desde que os orçamentos e a área da pesquisa sejam os mesmos?
Ora, ambos jornalistas e cientistas trabalham com prazos, orçamentos e espaço limitados - as simples decisões do que
não fazer ( que livros
não olhar, que artigos
não pesquisar, a quais fatores prestar menos atenção, decidir quantas repetições se darão para cada teste, definir em quais áreas o orçamento deve ser gasto e quanto se coloca em cada área,
et cetera) são fruto de inúmeros processos subjetivos. Obviamente, ninguém pode saber o resultado final de sua reportagem/pesquisa
antes que ela fique pronta (o que facilitaria muito as coisas, convenhamos). Por isso, não pode saber de antemão se o tempo e dinheiro investidos no trabalho estão arranjados realmente da melhor maneira possível para atingir o objetivo proposto. Apenas depois é que fica-se sabendo disso (deveria ter gasto menos neste item de laboratório, demorado mais na entrevista com fulano, não ter desperdiçado tempo com este livro bobo, gasto mais espaço com a tabela que omitiu aquele dado relevante, lido mais sobre aquilo outro,
et cetera).
Junte-se isso ao fato de que quem paga irá certamente querer também mandar, e temos mais um indesejado fator de pressão sobre nosso herói buscador de verdade (seja ele jornalista, cientista, historiador, detetive, ou o que quer que seja).
Que os meus orgulhosos amigos que freqüentam os ICBs e ICEXes da vida saibam: a
Ciência pode ser totalmente honesta, nunca os
cientistas.
Outro ponto a ser dito sobre neutralidade é que nunca significou aproximação da verdade. É triste saber que tanta gente ainda confunda neutralidade com honestidade. Em certas situações, os dois conceitos se tornam opostos - se um amigo seu está diante da escolha entre dois cursos de ação no qual um é obviamente melhor que o outro, e ele lhe pede um conselho, você será
neutro ou
científico? Fiquemos com a máxima de Olavo de Carvalho:
Científico não quer dizer neutro, quer dizer apenas honesto.
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A segunda obsessão aqui tratada é aquela com a
normalidade. Não vou falar aqui daquele papo de manter a personalidade e tudo o mais. Quero apenas dissertar sobre a inerente falha lógica neste objetivo.
Querer ser uma pessoa normal (ou seja, não ser chamado de
freak) implica necessariamente em definir um certo padrão de comportamento, e então seguí-lo. Em teoria, tal padrão de comportamento é buscado na maioria dominante em seu meio social. Mas esse padrão pode ser definido objetivamente? O que dizer das modas que desaparecem em pouco tempo? Resolve-se na base do
maria-vai-com-as-outras? Mas como saber quando seguir e quando esperar mais gente seguir antes? O que dizer da primeira pessoa a seguir alguém numa determinada moda - quando ela deixa de ser "o
freak que seguiu o
freak" e passa a ser normal? E essa pessoa que inaugurou a moda - será que ela está totalmente alheia à vontade ser "normal"?
E como fica a questão de que num mesmo grupo cada um passa seu tempo fora do grupo de uma maneira diferente? (sua turma se encontra regularmente, tudo bem. Mas e quando vocês não estão juntos? Estão todos fazendo as mesmas coisas? Se comportando do mesmo jeito?)
Estas questões, obviamente, não podem ser respondidas objetivamente. Donde se conclui que a vontade de ser normal é algo totalmente irracional, visto que é um objetivo do qual nunca se terá certeza de que foi atingido. O máximo que os obcecados podem fazer é se
sentirem tidos por normais. E buscar um mérito desses deve ser mesmo recompensador. Portar uma discreta e normalíssima medalha onde se lê: "Medíocre".
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A terceira obessão é a noção de que a verdade - e/ou o melhor caminho - é alcançada pelo equilíbrio. Assim, os políticos das verdadeiras
direita e
esquerda são "radicais demais" (como se fosse possível ser "radical na medida certa"), e os melhores estão no centro; o sistema ideal de gestão econômica deve misturar "na medida exata" capitalismo e socialismo; a pena ideal para certo crime deve estar na média aritmética entre o mínimo e o máximo propostos; o Estado não deve ser laico nem fundamentalista, mas algo no meio do caminho; certo fato histórico não foi nem "um massacre" nem "um protesto pacífico" mas sim "uma pequena matança"... enfim. Exemplos melhores abundam em conversas nos botecos desta cidade - que não são poucos!
Os perigos desta noção são tão óbvios que não convém enumerá-los de forma séria, mas fica o alerta de que esta vilã do pensamento é muito mais comum e mais perigosa do que se imagina. Parece haver um permanente diplomata corrupto no raciocínio de muitas pessoas, seduzindo-lhes com a maravilha (inexistente, claro!) do equilíbrio.
Mas se o remédio curou um paciente e matou outro, vá lá - dê ao próximo meio remédio.
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A quarta comum e idiota obessão do senso comum é aquela com a coerência da personalidade. Você já sentiu isso. Aqui e ali em rodas de fofoca, alguém começa a falar mal de uma pessoa. Ela é chata, ela é não-sei-o-quê², ela é antipática, arrogante, não sei o que mais³. Mas na mesma roda de conversa tem outra pessoa que vai* e diz: "mas eu acho essa pessoa muito gente boa! Ele me trata mó bem e tal!". Pronto. Mesmo que os dois interlocutores não briguem (e não deveriam mesmo) não é preciso olhar para os lados para ver as expressões de desprezo e escárnio dos demais participantes da conversa.
Quem é gente boa tem que ser gente boa com todo mundo! E quem é chato não pode tratar ninguém bem! Isto é um absurdo! Como ousa esse chato, esse vilão, cujo nome virou sinônimo para um monte de verbos ruins, e do qual a gente sempre fala e despreza para nos sentirmos melhor a respeito de nós mesmos, cometer o terrível crime de...
ser gente boa com alguém da nossa roda! É uma dupla traição. Traição do chato - que quebrou sua imagem de chatice - e traição da pessoa que acha o verme gente boa.
Dsede que não se faça nada de criminosamente errado, ninguém é obrigado a tratar todo mundo do mesmo jeito. Não interessa se duas pessoas tratam uma terceira
exatamente da mesma maneira: ela tem todo o direito de responder de maneiras diferentes a cada uma das duas. E fim de papo.
Esta obessão é terrível. Porque estejam certos de que todos nós já fomos o "chato que só um acha gente boa numa rodinha" muitas e muitas vezes em nossas vidas.
***
Eu ia falar hoje de um monte de coisas legais que passaram na minha cabeça na Savassi esta tarde (e justificam a imagem deste post, uma montagem que eu fiz), mas prometi afastar o DOIDIMAIS CORPORATION de um diário - pelo menos por enquanto - então fica pra
depois. E por
depois eu quero dizer
nunca. Ou pelo menos
daqui a muitas décadas,
quando e
se (com ênfase no
se) eu escrever minha biografia**.
¹
Não escrevi "dupla exigência" porque é clichê.
²
Vício mineiro de linguagem, extremamente comum, deve ser pronunciado bem rapidamente.
³
Idem.
*
Outro vício, este "vai" totalmente sem sentido e igualmente desnecessário. Usado aqui à maneira de crônica.
**
Se eu escrevesse "autobiografia", não seria pleonasmo?
Peixes: